terça-feira, janeiro 27, 2009

“Vou levá-la a um dos meus restaurantes preferidos – diz enquanto estaciona o carro numa rua perpendicular ao mar, na Foz.
- O tal Cafeína? Nunca lá fui.
- Há sempre uma primeira vez para tudo – remata com ar absorto antes de desligar o motor. Bem, bem, ainda não nos sentamos à mesa e já começaram as bocas. Isto ainda vai dar molho.
Não escondo o meu agrado pela escolha. O Cafeína é daqueles restaurantes que conquistam mesmo antes da primeira garfada. Sento-me com a sensação de que vou cá voltar muitas vezes. (…)
Olho-o fixamente. Este homem tem qualquer coisa. Qualquer coisa de especial que me dá vontade de ficar a tarde toda a conversar com ele. E não é só charme nem simpatia. É outra coisa qualquer que não consigo definir. Uma mistura alquímica de doçura e inteligência. (…)
Fala baixo, particularmente baixo, como se nem eu própria pudesse ouvir o que diz. Sinto o olhar dele a entrar-me pela cabeça adentro. E sinto-me invulgarmente permeável, indefesa perante a sua perspicácia e rapidez. Se não lhe achasse graça, consideraria este tipo de comentários despropositados e de mau gosto. Mas há qualquer coisa nele que me desarma, e o pior é que não me estou a importar nada com o facto de ele me desarmar. (…)
Acabamos de almoçar tarde, depois de uma longa conversa em que ambos revelamos mais do que gostaríamos das nossas vidas. (…) É isso. É isso mesmo. É a calma, nele, que me seduz. O tom de voz baixo e pausado, o olhar tranquilo, os gestos ponderados, as palavras escolhidas, o sossego e o recolhimento. Este é o tipo de homem que passa horas fechado em casa a ler e a ouvir Keith Jarrett. Aposto que tem uma casa aconchegada, com uns sofás cheios de almofadas e dezenas de molduras com fotografias dos amigos na sala. Pertence ao strong silent type que o Woody Allen tanto inveja. E eu também. (…)
Está surpreendido comigo tanto como eu com ele. Há sempre um Portugal desconhecido que espera por si. (…) Se possuísse um pingo de bom senso punha-me imediatamente a andar (…) Mas, como dizem os espanhóis, el sentido común es el menos común de los sentidos. E eu tenho esta atracção fatal pelo abismo, apetece-me sempre pisar o risco e desafiar a sorte. (…) Ninguém faz nada nesta merda de país, preferem todos aderir ao sistema em vez de dar uma volta à vida.
- Se pensasse com um bocadinho mais de calma não ficava com tantas rugas nessa testa de boa aluna…
Lá está ele outra vez a apanhar-me o fio à meada. A empregada de mesa aproxima-se.
- São dois gelados de limão com vodka por favor, enquanto a senhora pensa se me vai ou não mandar à fava – diz ele à rapariga de cabelo escorrido e óculos graduados. – O que é que acha? Acha que eu mereço que ela me mande à fava ou não?
Isto é extraordinário. Está a fazer charme à empregada do restaurante e ao mesmo tempo a gozar com a minha cara. A rapariga olha para ele com um ar enfiado e esboça um sorriso falhado em forma de esgar.
- Deixe lá, o senhor gosta de dizer estes disparates.
A rapariga afasta-se com passos curtos e hesitantes.
- Como é que sabe?
- Com tanto à vontade, deve fazer destas gracinhas todos os dias.
- Olhe que não, olhe que não… – fixa-me com ar discretamente sedutor – se fosse a si, ficava hoje por cá…parece-me que nos vamos dar muito bem… o que é que acha?
Cabrão. Estás-me a lançar a rede e está-me a apetecer cair. (…)
A sobremesa aterra finalmente em cima da mesa. Ele tem razão. Gelado de limão com vodka é uma combinação de primeira água. Saboreio o manjar enquanto me observa deliciado.
- Já vi que gosta das coisas que lhe recomendo…
- Pois gosto.
- E olhe que ainda não viu nada.
Se a presunção pagasse imposto, este gajo levava com a tabela máxima.
- O que vi já chega.
- Mas o que eu vi ainda não.
- O que é que quer dizer com isso?
- Quero dizer que você é uma mulher excepcional em demasiadas coisas para eu não me interessar por si. É muitíssimo esperta, sabe o que quer, trabalha bem, é bonita, tem uma maneira de se arranjar que me agrada, é requintada, elegante, tem savoir faire, tem bom ar…olhe, acho-lhe imensa graça, o que é que quer que eu lhe diga?
Quero que te cales, estúpido. Sabes muito bem que as mulheres resistem mal a elogios e estás-te a aproveitar disso. (…)

Estou a apaixonar-me minuto a minuto, segundo a segundo. Sinto-me dissolvida nele e em tudo o que o rodeia. Sei que este jogo é perigoso e arriscado, há muitos anos que não o jogo, mas agora não me interessa. Quero perder a cabeça e deixar-me ir nos braços deste homem. Do aplauso nasce o amor, escreveu Gabriel Garcia Marquez, eu admiro este homem. Admiro-o em tudo o que faz e que diz, pela forma como o faz e como o diz. Admiro a sua calma e ponderação, a sua forma sossegada de amar, o seu espírito crítico e observador, a sua cabeça pensante e a sua personalidade vincada sem um traço de dureza. Quero tê-lo perto de mim, nem que seja por um dia, nem que seja por um instante. Estou a apaixonar-me outra vez, mas já nada me preocupa. Perdi o medo, sou só vontade. Ele olha-me com os olhos cheios de curiosidade e prazer, como se quisesse registar na memória cada momento, cada gesto, cada movimento da minha boca.
- Há momentos na vida em que me sinto tão próximo da perfeição que podia morrer daqui a uma hora e não me importava.
Respondo-lhe: eu também…
Quando olho para o relógio passa das cinco da manhã e espanto-me com a frescura que sinto, como se o corpo não fosse meu, como se apenas o meu espírito ali estivesse a pairar, suspenso no tecto a vaguear (…)
Ele abraça-me outra vez, levanta-se e traz-me o pequeno-almoço à cama. O dia começa a clarear lá fora enquanto dançamos durante horas esquecidas, fundidos um no outro, como se tivéssemos crescido a dançar juntos.
E nessa manhã, algumas horas mais tarde, quando acordo ao lado dele e o vejo erguer-se a abrir ligeiramente as cortinas, reparo que daqui a alguns anos vai ficar careca e que não me vou importar.”

In "Não há coincidências" de Margarida Rebelo Pinto