quinta-feira, janeiro 13, 2011

"Para ser grande sê inteiro"

"Ricardo Reis é - nas palavras do Pessoano Prado Coelho - entre os heterónimos o 'amante do exacto', aquele que prega os ensinamentos firmes e nobres que vêm pela herança clássica do homem, desde os romanos e os gregos.

Reis é assim, como Caeiro, aquele que aceita a vida sem pensar, mas Reis, oposto de Caeiro, sente em si mesmo a opressão da Natureza e da vida. Se Caeiro aceita ingenuamente a realidade, Reis ressente-se com ela e gera em si mesmo um sofrimento com a perda que escolhe ser a sua.

Caeiro acredita num Deus fora de si que é um Deus disforme, feito Natureza, enquanto Reis confia em deuses incertos e vagos, símbolos rasos de uma crença pouco uniforme, à maneira dos clássicos, em que os deuses informam nos medos e nas desconfianças dos homens.

(...)

Reis, se por um lado defende não haver uma fé em que o 'homem seja inteiro', defende por outro que o homem 'seja inteiro sem a fé'. É um principio basilar da filosofia de Ricardo Reis que o homem encontre no seu sofrimento a sua nobreza, ou seja, que aceite a dor da vida de maneira inteira, que seja inteiro nesse sofrimento, mesmo que não seja inteiro numa fé. É mesmo por não ser inteiro numa fé que o homem deve ser forte em ser inteiro na realidade, como é.

'Para ser grande, sê inteiro', diz Ricardo Reis. O homem, porque aceita a realidade, deve ter uma atitude nobre mesmo perante o sofrimento que vem com essa aceitação.

'Nada teu exagera ou exclui'. Reis defende que o homem abdique de tudo, mas que não abdique de si próprio. Apenas aquilo que é ilusório deve ser extirpado da experiência humana, porque apenas traz ao homem a humilhação. Entre essas coisas estão a religião e o amor.

Ataraxia - calma de espírito, resignação - e em Reis sobretudo: indiferença. Este é a palavra chave para resumir a atitude de Reis-Pessoa, e também de Pessoa-Reis, perante a vida.

'Sê todo em cada coisa'. Ou seja, procura em cada coisa a tua inteira felicidade, porque a felicidade, se está nos objectos, não está na realidade. E é no campo estrito dos objectos, e não da vida, que o homem expressa a sua personalidade. Trata-se enfim de uma visão estóica, de um sofrimento e de uma resignação que encontra apenas um campo muito limitado de liberdade humana.

Mas toda esta atitude é, curiosamente, nobre. Nobre porque em Ricardo Reis o homem aceita o seu destino como um gladiador aceita a sua morte na arena. É nobre porque nessa aceitação há uma compreensão obliqua do que se aceita. Reis sabe que vai sofrer ao aceitar o sofrimento desta maneira - que não é a maneira ingénua de Caeiro - mas é ao aceitar esse sofrimento que se afasta dos outros homens tornando-se superior a eles pela sua atitude.

A poesia de Caeiro é uma poesia de segundos. Cada momento é toda uma vida, porque em cada momento se exprime uma liberdade renegada, um alcançar de um objecto, uma finalidade. Isto porque a realidade já não existe, porque há apenas renúncia e resignação.

Quando Ricardo Reis refere o brilho da lua no lago e nos diz que no lago toda a lua vive, mesmo só no reflexo, dá-nos um símbolo para a compreensão completa do seu pensamento, tal como foi explanado anteriormente.

É na 'altura' que a lua vive e não na proximidade. O reflexo dá-nos uma noção do afastamento da realidade que a lua tem com a água onde se reflecte. Quem a vê no reflexo, vê-a por inteiro, mas não conhece a sua essência. No entanto ali está toda a lua. Tal como o homem, ao se dar, pode dar o seu reflexo à realidade, à sociedade, sem que ninguém o conheça no seu intimo. Apenas o seu reflexo.

Esta atitude, este 'viver pelo reflexo', 'na altura', é uma atitude nobre e estóica de Ricardo Reis. Uma atitude de afastamento e nobreza, que caracteriza toda a sua poesia".

@http://www.umfernandopessoa.com